Mudam-se os tempos, mudam-se os discursos
Num episódio recente do Question Time da BBC, a deputada trabalhista Heidi Alexander foi confrontada por uma senhora na audiência com uma pergunta direta: por que razão o Reino Unido continua a fornecer componentes para os F-35 utilizados por Israel em Gaza? O que me chamou a atenção não foi tanto a resposta da deputada, mas o facto de ninguém ter ficado chocado com a pergunta. Foi ouvida. O termo "genocídio" foi usado e não houve de imediato uma reação de censura ou uma tentativa de desqualificação. Há pouco tempo, bastaria pronunciar esta palavra, associada a Israel, para ser acusado de extremismo ou antissemitismo. Agora, não é bem assim. E isso fez-me pensar.
Não digo que isto seja uma mudança drástica ou um ponto de viragem, mas é, sem dúvida, uma abertura no que antes parecia ser um bloco impenetrável. Durante muito tempo, a crítica ao Estado de Israel foi tratada como suspeita, perigosa, quase ilegítima. Chamar-lhe um Estado de apartheid e genocida era, no contexto mediático português e não só, uma linha que poucos se atreviam a cruzar. Não porque faltassem argumentos, mas porque o ambiente não o permitia.
Eu próprio fui, durante muito tempo, ignorante quanto à realidade da catástrofe. A minha visão era difusa, pouco informada, moldada pela narrativa ocidental que justifica tudo sob o pretexto da segurança israelita. Foi ouvindo ativistas e jornalistas, assim como políticos da Irlanda e de Espanha, que comecei a perceber o que realmente estava em causa. Recordo-me de Simon Harris, antigo Taoiseach da Irlanda, dizer que "não pode haver absolutamente nenhuma justificação para a escala de sofrimento humano que estamos a testemunhar em Gaza" e que "a comunidade internacional tem de agir" (The Irish Times, 21/05/2024). Esta clareza, vinda de uma figura de Estado europeia, sem eufemismos nem hesitações, teve um peso relevante.
Foi particularmente através da cobertura da Al Jazeera, uma das poucas redes internacionais com presença contínua no terreno, que fui forçado a confrontar-me com a realidade. Ver hospitais bombardeados, crianças sem acesso a tratamento, famílias inteiras enterradas em ruínas, já não era uma questão de geopolítica ou equilíbrio regional, era uma catástrofe humana. Ao mesmo tempo, ouvi Gabor Maté, médico judeu nascido na Hungria e sobrevivente do Holocausto, afirmar que "o que está a acontecer em Gaza é um crime. Um crime contra a humanidade. E está a ser cometido com o total apoio dos governos ocidentais". Acrescentou ainda: "Como judeu, não posso ficar em silêncio. Foi precisamente isso que me disseram em criança, 'Nunca mais'. E o que significa 'nunca mais'? Não significa nunca mais apenas para os judeus. Significa nunca mais para ninguém" (Democracy Now!, 31/10/2023).
Depois da resposta israelita aos ataques de 7 de outubro, uma resposta que não foi apenas militar, mas abertamente punitiva contra toda uma população, tornou-se impossível continuar a relativizar. Estamos a falar de um cerco total: negação de cuidados de saúde, destruição sistemática de hospitais, bloqueio de alimentos, bombardeamento de escolas e zonas residenciais, recusa de abrigo e a proibição quase absoluta de fuga. O impacto foi tal que a esperança média de vida na Faixa de Gaza sofreu um colapso sem precedentes. Segundo um estudo da Universidade da Pensilvânia, publicado na revista The Lancet, entre outubro de 2023 e setembro de 2024, a esperança média de vida caiu de 75,5 anos para 40,5 anos, uma redução de 35 anos. No cenário mais pessimista, este valor desce para 36,1 anos. Estes números traduzem uma realidade em que a morte se tornou quase inevitável para amplas camadas da população, sobretudo crianças e jovens. E tudo isto foi justificado por responsáveis israelitas com argumentos de extermínio, como a afirmação feita abertamente na Knesset de que as crianças palestinianas acabarão, provavelmente, por se tornar membros do Hamas.
Curiosamente, à medida que o discurso em Israel se radicaliza, o discurso público no Ocidente começa a mostrar sinais de abertura. Lembro-me bem de como, nos meses após outubro, figuras como Helena Ferro Gouveia dominaram o espaço mediático português, defendendo de forma firme e incondicional as ações do governo de Netanyahu e do exército israelita. Qualquer tentativa de crítica era prontamente descartada como desinformação ou ódio ideológico.
Mas isso mudou. Passados alguns meses, essas vozes perderam protagonismo. Hoje, já não dominam o debate como antes. Já não têm o mesmo peso. E isso não significa que desapareceram, significa que já não encontram o mesmo espaço disponível. A estrutura de permissão, que antes blindava qualquer crítica, começou a fissurar. Não de forma revolucionária, mas suficiente para que o debate se alargue.
Este processo faz-me lembrar em outros. A homofobia, por exemplo, foi durante décadas socialmente aceite, reforçada pelas instituições e pelos media. Gozar com pessoas LGBTQIA+, negar-lhes direitos ou dignidade era normal. A mudança só aconteceu quando a crítica começou a ser possível. Quando falar, e ser ouvido, tornou-se viável. E foi aí que a estrutura de permissão começou a deslocar-se.
O que estamos a ver com Gaza, talvez, seja algo semelhante. A palavra "genocídio", que antes parecia impronunciável em certos contextos, começa agora a surgir em debates parlamentares, relatórios jurídicos e intervenções mediáticas. Ainda é contestada. Ainda há quem reaja com violência a quem a usa. Mas já não é, por si só, um tabu absoluto.
Nada disto é, por si só, garantia de justiça. As chamadas estruturas de permissão podem estar a mudar, mas isso não significa que haja, automaticamente, ação política ou moral. Israel continua a levar a cabo um massacre em Gaza e a expandir a colonização ilegal na Cisjordânia. Desde 7 de outubro, atacou várias vezes o Líbano, violou o território sírio e envolveu-se num novo confronto com o Irão. Portugal não vende diretamente armas de fabrico próprio a Israel, mas concede licenças para exportação de componentes aeronáuticos e materiais de uso militar. O Reino Unido mantém a exportação de componentes para aviões de guerra. A Alemanha é o segundo maior exportador de armas a Israel. Mas União Europeia limita-se a declarações ambíguas. E os líderes, em vez de assumirem posições claras, continuam a evitar qualquer rutura significativa. Mas o discurso tem mudado. E isso, mesmo que insuficiente, é sempre o primeiro passo.
Se hoje se pode dizer o que ontem era silenciado, é porque alguém insistiu. Porque houve protestos, relatos, imagens, jornalistas, vozes. Porque a realidade se tornou demasiado evidente para ser ignorada, até por aqueles que, como eu, que demoraram a ver.
E talvez, só talvez, esse ver já não seja tão raro como era.
Adriano Santos Ribeiro